Clóvis Cavalcanti Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)Publicação: 15/04/2017 03:00
No dia 5 de abril de 1975, o extinto semanário Jornal da Cidade, do Recife, estampou manchete de capa com os dizeres: “Cientistas lançam manifesto contra o Complexo de Suape”. Na verdade, quem o redigiu fui eu. Submeti-o depois à apreciação de um número de pessoas, das quais foram seus signatários, comigo, os professores Nelson Chaves, grande nome da nutrição, José Antonio Gonsalves de Mello, o maior historiador do período holandês no Brasil, João de Vasconcelos Sobrinho, um dos maiores ecólogos brasileiros, Renato Carneiro Campos, diretor do Departamento de Sociologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, todos falecidos, e Renato Duarte, professor de economia da UFPE e Roberto Martins, coordenador do Curso de Mestrado em Sociologia da UFPE. Naquele momento (antes da “abertura política”), a atmosfera era de risco para críticas ousadas. Precisava-se de coragem para contestações ao governo federal e aos estaduais, que se empenhavam em promover grandes empreendimentos. O Brasil tinha atravessado anos – que jamais se repetirão – de crescimento econômico miraculoso, com taxas da ordem de 10% a.a., e até maiores. Havia euforia em torno de grandes empreendimentos que alavancassem o PIB, sob a suposição de que se criaria emprego e acabaria com a miséria. Essa era a imagem que os autores do Projeto de Suape passavam. Só que tudo era feito – e continua sendo, na verdade – sem consulta à população e ignorando-se os custos sociais e ambientais das iniciativas. Eu me incomodava com essa omissão. Ao escrever o manifesto, eu propus que, com uma metodologia de ausculta à sociedade, se fizesse a avaliação de impactos ecológicos. Este último era assunto de que ninguém tratava então. Inexistia movimento ambientalista e era rala a consciência ecológica no país.
Foram fortes as reações ao manifesto. O governo de Pernambuco o rebateu com fúria afirmando que os autores do protesto “apenas encontraram bases emocionais e pressa na crítica, com total desconhecimento do assunto”. Assegurava: Suape “trará emprego, melhorará as condições de vida das populações do estado e dará condições de aumentar a produtividade dos campos de Pernambuco e da região”, absorvendo “o excedente de população do meio rural” – coisas que, quatro décadas depois, são negadas pelos fatos. Conversa fiada. Quanto à crítica ecológica, a nota assegurava que não haveria perigo de poluição com o projeto. A razão: havia nele a previsão de uma central de tratamento de resíduos, que os autores do documento não enxergavam. Mais mentira. Dizia o governo haver também previsão de uma barreira de proteção ecológica, com reflorestamento, algo que só começou a ser realizado em 2011, quando Eduardo Campos nomeou Sérgio Xavier secretário de Meio Ambiente de Pernambuco – 39 anos depois. No tocante à falta de discussão da iniciativa, de consulta à sociedade, rebatia a nota: “As consultas se fizeram, pois a Assembleia Legislativa aprovou o projeto … e os órgãos de classe e Clubes de Serviço debateram e deram seu apoio”. Sublinhava que “o Conselho Estadual de Cultura, sob a presidência do Mestre Gilberto Freyre, louvou o projeto por sua preocupação em preservar os sítios históricos e cuidar da defesa do meio ambiente”. Que essa preocupação não era prevista deduz-se do que escreveu em 2007 o secretário de Planejamento de Pernambuco de 1975, Luiz Otávio Cavalcanti: “O movimento que se opunha à construção de Suape colaborou, com suas opiniões, para que o governo adotasse medidas oportunas, voltadas ao controle ambiental”.
Passados 42 anos, o que se pode testemunhar em Suape é uma irreparável destruição ambiental, afetando o ecossistema marinho da região e acabando com a pesca, que era abundante ali. Ao mesmo tempo, o histórico de indignidades e violência cometidas contra comunidades que moravam na área ocupada e que resistiam à expulsão forçada de lá, de que o Fórum Suape, de entidades ligadas à população dali, revela, causa revolta. Por outro lado, com a destruição dos manguezais, berçário natural de peixes, as populações de pescado de Suape sofreram drásticos cortes. Isso abalou a comunidade local, que girava em torno da pesca, causando sofrimento e empobrecimento aos habitantes do lugar. Cristiano Ramalho, antropólogo e professor da UFPE, registra-o em sua tese de doutorado, de 2007, para a Universidade de Campinas (Unicamp). O drama de Suape também se estende à extinção de fontes de alimento para a Região Metropolitana do Recife, como no caso de frutas de excelente qualidade ali encontradas: caju, mangaba, manga, jaca, cajá, jambo, pitomba, abacate, etc. Para mim, uma desgraça. Desgraça mais ampla ainda, na verdade, e que está bem documentada em trabalho de conclusão do curso de ciências sociais da UFRPE, de 2009, de Marcos Miliano, bolsista da Fundação Joaquim Nabuco, relativo ao processo de expulsão dos moradores da Ilha de Tatuoca, para a construção de um estaleiro. O Manifesto de 1975 não desenhou uma falsa realidade. Profetizou. Está vivo.
Fonte: Diario de Pernambuco