Advogada e membro do Fórum Suape
Inicio essa reflexão remetendo os leitores ao site http://raquelrolnik.files.wordpress.com/2010/01/guia_portugues.pdf, onde encontrarão um Guia, “produzido pela Relatoria Especial da ONU para a moradia adequada, que sintetiza o que as normas internacionais determinam sobre remoções involuntárias decorrentes de projetos públicos e privados de infraestrutura e urbanização. O objetivo deste Guia é orientar para que os projetos sejam desenvolvidos com respeito ao direito à moradia adequada das comunidades por eles atingidas”. Eis um pequeno trecho desse documento:
“Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, o direito à moradia adequada passou a incorporar o rol dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente como universais, ou seja, que são aceitos e aplicáveis em todas as partes do mundo e valem para todas as pessoas. Depois da Declaração, tratados internacionais determinaram que os Estados têm a obrigação de promover e proteger este direito. É importante especialmente o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que em seu artigo 11 dispõe que toda pessoa tem direito a um padrão de vida adequado para si e sua família, inclusive à moradia adequada, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Atualmente há mais de 12 textos diferentes da ONU que reconhecem explicitamente o direito à moradia. Ele é parte integrante do direito a um padrão de vida adequado e é neste contexto que deve ser compreendido.
a) garantia de um lugar para morar sem ameaça de remoção;
b) acesso a educação, saúde, lazer, transporte, energia elétrica, água potável e esgoto, coleta de lixo, áreas verdes e um meio ambiente saudável;
c) proteção efetiva contra frio, calor, chuva, vento, incêndio, inundação, sem riscos de desmoronamento ou outras ameaças à saúde e à vida;
d) acesso aos meios de subsistência, inclusive acesso à terra e a trabalho;
e) uso de materiais, estruturas e organização espacial de acordo com a cultura dos moradores;
f) prioridade às necessidades de grupos específicos, como as mulheres e grupos vulneráveis como crianças, idosos e deficientes;
g) acesso independente da renda ou da capacidade de pagar do morador.”[1]
A administração Eduardo Campos, caminhando na contramão da história da aquisição e defesa dos direitos dos trabalhadores rurais deste Estado, história que teve importante capítulo escrito por seu avô, Dr. MIGUEL ARRAES, até hoje lembrado por aqueles que fundaram a COOPERATIVA AGRÍCOLA DO TIRIRI, vem sistematicamente VIOLANDO direitos fundamentais dessa população formada por gerações de trabalhadores rurais. E, ainda mais grave, fazendo-o com a ativa participação do Poder Judiciário do Estado de Pernambuco.
As ações possessórias ajuizadas pela empresa SUAPE COMPLEXO INDUSTRIAL PORTUÁRIO GOVERNADOR ERALDO GUEIROS contra agricultores das áreas rurais do entorno do Porto de Suape são eivadas de vícios insanáveis, e questões de ordem pública são sistemática e deliberadamente ignoradas pelo Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco legitimando a expulsão dos agricultores das áreas rurais da Região Metropolitana para permitir a alienação de suas terras para as empresas que estão se instalando na área industrial portuária de SUAPE.
Nas Varas da Fazenda Pública das comarcas do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca, e nas Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que estão julgando, respectivamente, as ações de reintegração de posse ajuizadas pela SUAPE contra agricultores fixados há mais de meio século no entorno da área industrial portuária, e os recursos por estes interpostos contra as teratológicas decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau, não tem vigência a Constituição da República, nem os Tratados Internacionais firmados pelo Brasil, nem as leis infraconstitucionais.
Preconiza a CARTA DA REPÚBLICA, em seu artigo 5º, inciso III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Ora, a situação de miserabilidade a que foram relegadas as famílias já expulsas de suas terras, que tiveram suas casas derrubadas por força de antecipação de tutela deferida pelo juiz Rafael José de Menezes, a exemplo do que ocorre na área do Engenho Tiriri, é uma demonstração inequívoca do tratamento desumano e degradante que o Estado de Pernambuco vem dispensando a uma população rural que está sendo expulsa de suas terras, privada de moradia e trabalho, sem a PRÉVIA E JUSTA INDENIZAÇÃO que lhes é devida. E tudo com a aquiescência do Poder Judiciário.
A situação dos moradores ainda não expulsos vem se degradando a cada dia, ficando os mesmos privados de bens essenciais, como água potável. Sabido que em várias áreas rurais do entorno de SUAPE cacimbas foram aterradas e os mananciais que ainda estão disponíveis estão inservíveis, com a água contaminada pelas obras que se desenvolvem no entorno. Exemplo: o que está ocorrendo na ilha de Tatuoca e em áreas do engenho Massangana (sítio do senhor Cláudio e de seus familiares).
Os graves problemas que atingem as famílias de agricultores não estão dissociados de outros, também gravíssimos, que atingem as comunidades pesqueiras da região, decorrentes dos irreparáveis danos ambientais decorrentes da implantação do projeto Suape.
Famílias ficaram ao relento, cidadãos privados de moradia e de trabalho, sem que o Estado de Pernambuco se sensibilize para evitar os danos materiais que lhes estão sendo impostos, e para minimizar o impacto social advindo da desestruturação de suas vidas no campo, para ceder lugar a esse “progresso” anunciado aos quatro ventos pela administração Eduardo Campos.
O cerne da questão não é unicamente obter uma INDENIZAÇÃO PRÉVIA E JUSTA, como preconiza a Carta da Républica. Mesmo que todos os posseiros estivessem recebendo a justa indenização por suas terras e benfeitorias, o que não ocorre, não estaria o Estado de Pernambuco desobrigado de viabilizar a imediata implementação de uma POLÍTICA PÚBLICA que contemple, dentre outras coisas, a questão da habitação e do reassentamento dos trabalhadores rurais. A questão da remoção da população rural do entorno do Porto de Suape não se resolve apenas com dinheiro.
Quando a empresa SUAPE avalia uma casa de taipa e deposita o irrisório valor do imóvel para obter, na Justiça, uma antecipação de tutela, expulsando esse morador da área rural, o Estado está ferindo de morte a dignidade desse(a) trabalhador(a). A empresa SUAPE está tirando “uma casa” e o Estado de Pernambuco está retirando desse(a) trabalhador(a) o DIREITO À MORADIA, AO TRABALHO, A UMA VIDA DIGNA, o que contraria a norma inserta no artigo 6º da Constituição Federal, que dispõe sobre os DIREITOS SOCIAIS que o Estado tem o dever constitucional de assegurar a todos os cidadãos brasileiros.
As ações de reintegração de posse aforadas pela SUAPE, à míngua de comprovação do exercício anterior da posse das respectivas áreas, não poderiam, sequer, serem acolhidas pelo judiciário; nas ações possessórias em que não foram citados os cônjuges e/ou companheiros, os processos são eivados de VÍCIO INSANÁVEL impondo-se seja decretada a sua NULIDADE ABSOLUTA, não podendo ser cumprida nenhuma decisão neles proferida; as ações para remoção de população rural devem ser necessariamente acompanhadas pelo Ministério Público, sob pena de NULIDADE.
Eis uma lista não exaustiva da legislação aplicável no Brasil, ignorada pelos poderes Executivo e Judiciário do Estado de Pernambuco quando o assunto é a implementação do Projeto SUAPE:
- Constituição Federal e ADCT
- Estatuto da Cidade – Lei 10257/2001: sobre política urbana
- Estatuto da Terra – Lei 8629/1964: sobre política agrária
- Código Florestal – Lei 4771/1965: sobre coberturas florestais
- Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei 9433/1997: sobre proteção e gestão dos recursos hídricos
- Lei 8629/1993 – regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária
- Lei 11977/2009, Capítulo III, Seção II – trata da regularização fundiária de interesse social
- Resolução 237 CONAMA – sobre licenciamento ambiental, inclusive sobre a exigência de elaboração do EIA-RIMA
- Código de Processo Civil Brasileiro
- Código Civil Brasileiro
Os abusos perpetrados pelo Estado de Pernambuco com a expulsão da população rural do entorno do complexo industrial portuário de Suape, mesmo se travestidos de legalidade por ordens judiciais eivadas de vícios insanáveis, deve ser objeto de resistência e de denúncia. A questão política deve ser amplamente discutida pelos movimentos sociais que se reuniram para criar o Fórum Suape, e as questões jurídicas devem ser encaminhadas, com urgência, ao conhecimento do Conselho Nacional de Justiça, uma vez que o notório saber jurídico de nossos eminentes julgadores está esbarrando em objetivos outros que não distribuir, de forma imparcial, a tão esperada JUSTIÇA!
_________________