Imagem: Fernando Martinho/Repórter BrasilDenúncias contra megaempreendimento em Pernambuco incluem formação de milícia, danos a casas e restrições de uso do território; acusações chegaram à ONU
A memória de Otacília Rodrigues da Silva, cabelos brancos e olhar desolado, só falha para falar da própria idade. Moradora do
quilombo Ilha Mercês, no litoral sul de Pernambuco, ela ainda guarda o barulho que ouviu há dois anos, quando um temporal derrubou as paredes de sua casa. Esse não é o seu único trauma.
“Suape diz que não posso levantar uma nova casa. Meu maior medo é morrer sem ter a minha casa de volta”.
Chorando, ela mostra como tem conseguido dormir desde então: um comprimido de 10 miligramas do tranquilizante Diazepam por dia.
Quase quarenta anos após a sua criação, o Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros- Suape, um megaempreendimento de 13.500 hectares que tem como sócio majoritário o governo pernambucano, parece comprovar que faz jus ao nome.
Por violar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, organizações da sociedade civil elegeram Suape como caso emblemático no Brasil. “Suape é a Belo Monte invisível”, diz Caio Borges, advogado da Conectas, uma das organizações que denunciou as violações socioambientais.
Como Otacília, outras famílias são impedidas de reconstruir a própria casa ou fazer melhorias por funcionários de Suape, a quem a população chama de milícia. Há ainda relatos de restrições de acesso ao território, cobranças indevidas e demolições sem mandato judicial – entre uma série de outras denúncias. Ao menos três comunidades tradicionais denunciaram Suape ao Ministério Público Federal.
Romero Correia da Fonseca é o coordenador da fiscalização em Suape e está
subordinado a Sebastião Pereira Lima, diretor de Gestão Fundiária e Patrimônio do complexo. Mas, para os moradores, ele é o chefe da milícia, controlando os seguranças.
A reportagem teve acesso a 22 boletins de ocorrência registrados contra Suape – o nome de Fonseca aparece em vários. Entre as acusações estão ameaças, com uso de arma de fogo, e danos ao patrimônio. Liderança do Engenho Ilha, Vera Lúcia Melo, 48 anos, entrou no Programa de Proteção à Pessoa após receber ameaças. Ao menos três comunidades tradicionais denunciaram o complexo portuário e industrial ao Ministério Público Federal. A formação de milícia está sendo investigada pela Polícia Civil de Pernambuco.
“Eles (a milícia) são de uma violência inominável”, diz Heitor Scalambrini, doutor em energia e coordenador do Fórum Suape, que presta assistência às comunidades.
Deslocamento forçado
“Meu maior medo é morrer sem
ter a minha casa de volta” – Otacília
A construção de Suape, começou em 1978 dentro de terras habitadas há gerações por comunidades tradicionais. Na época, eram 25 mil pessoas, segundo dados do Fórum Suape. Hoje, são menos de 7 mil, todos tratados como invasores dentro do território tradicional.
Um relatório da Fundação Getulio Vargas, obtido com exclusividade pela reportagem e que será publicado em dezembro, cita Suape e Belo Monte como antiexemplos do que o Brasil já deveria ter aprendido com a construção de grandes obras.
“Em ambas, as comunidades não participaram das tomadas de decisões e não houve transparência no reassentamento dessas populações”, diz a advogada Flavia Scabin, coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Humanos e Empresas na FGV.
A expansão que mais impactou os pescadores foi o aprofundamento do canal do Porto de Suape e o assoreamento da Ilha de Tatuoca. Mais de 80 famílias foram removidas da Ilha para o progresso chegar − quem não aceitou, foi despejado. Esses moradores, que sobreviviam da pesca e da agricultura, vivem hoje longe do mar e sem terra para plantar na Vila Nova Tatuoca, um conjunto habitacional do programa
Minha Casa, Minha Vida. Nem árvore nas ruas há.
Na vida de uma das famílias, o impacto é imensurável. Uma das matriarcas, removida, retornou à Ilha e se suicidou.
Quatro instituições, duas nacionais e as internacionais Conectas e Both Ends,
denunciaram Suape e a empresa holandesa Van Oord, contratada para fazer a
dragagem no porto, à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Nosso levantamento mostrou que Suape violou uma série de direitos internacionais antes, durante e depois de sua construção”, diz Borges.
Cobranças indevidas
A história do quilombo Ilha Mercês é um dos casos investigado pelo Ministério Público Federal (MPF). Em outubro de 2016, a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, reconheceu a área como comunidade remanescente quilombola.
Em tese, o reconhecimento federal deveria proteger a comunidade das
investidas de Suape, mas não foi o que aconteceu.
Em setembro deste ano, o MPF e a Defensoria Pública da União recomendaram à Suape que suspendesse as incursões na comunidade sem autorização dos moradores, as tentativas de compra de terrenos, as proibições às reformas nas casas e as cobranças indevidas. Nenhuma das recomendações surtiu efeito.
A Concessionária Rota do Atlântico, por exemplo, responsável pelas vias que dão acesso ao quilombo, ainda cobra pedágio de alguns moradores, que deveriam ser isentos. “Quem paga pedágio é quem faz resistência à empresa”, disse o filho de Madalena José Reis da Silva, 45, liderança do quilombo.
Complexo de Suape nega acusações; Van Oord não comenta
Em nota, Suape afirmou mantém diálogo aberto com os moradores via “Diretoria de Gestão Fundiária e Patrimônio, que cuida de todas as questões que envolvem os residentes”, mas não comentou sobre as investigações dentro e fora do país.
A respeito dos casos de ameaças e danos, diz que repudia “a utilização de violência contra as famílias nativas da região”, mas não comentou sobre os boletins de ocorrência registrados por moradores. O funcionário Fonseca, diz a nota, é coordenador da fiscalização. Afirmou ainda que os funcionários não trabalham armados e que as demolições são decorrentes de homologações de acordos na Justiça.
A Polícia Civil não comentou a participação do GATI nas ações e afirmou que não daria informações adicionais da investigação sobre a suposta formação de milícia. A Prefeitura de Cabo Santo Agostinho não respondeu até a publicação desta reportagem.
Sobre as incursões no quilombo Ilha Mercês, Suape informou que “está mantendo diálogo com as autoridades envolvidas no sentido de adequar suas disposições à realidade da região”, mas não comentou a cobrança de pedágio.
A Concessionária Rota do Atlântico diz que cumpre integralmente as condições estabelecidas com o governo de Pernambuco.
A Van Oord, contratada para fazer a dragagem, informou que não pode dar declaração porque “as partes deste processo estão engajadas em um processo de mediação que está sujeito à confidencialidade.”
Procurado, o governo do Estado, via assessoria de imprensa, negou o pedido de entrevista, uma vez que Suape já tinha mandado uma nota com esclarecimentos.
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