Fonte: Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
20 de fevereiro de 2015
Santiago Navarro F. e Renata Bessi
Com 12% da água doce disponível do planeta, mais de 3,5 milhões de hectares de lâmina d’água em reservatório de usinas hidrelétricas, um litoral de mais de oito mil quilômetros e ainda uma faixa marítima equivalente ao tamanho da Amazônia, o Brasil possui enorme potencial para a produção da aquicultura. O governo brasileiro, que criou um ministério exclusivamente para o assunto, o Ministério da Pesca e da Aquicultura (MPA), está tratando de direcionar esforços para aumentar a produção de peixe em cativeiro nas águas brasileiras, com o incentivo da Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura (FAO).
O ritmo de crescimento tem sido acelerado. De 2010 até 2013, a produção nacional de pescado mais que dobrou, saltando de 480 mil toneladas para aproximadamente 1 milhão de toneladas, de acordo com dados do MPA. Para o ano de 2014, a expectativa é que a produção aquícola nacional chegue a 1,3 milhão de toneladas.
O objetivo do governo de transformar os espelhos d’água em parques aquícolas é visto pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais como um risco para as áreas de pesca tradicional. “O loteamento das águas doces e salgados que está em processo agora em todo território brasileiro se assemelha ao processo de exploração das terras no Brasil. As terras foram se concentrando nas mãos de poucos proprietários e os pequenos agricultores foram sendo expulsos. Também estamos sendo expulsos para dar lugar a empresas e não vamos demorar a ver também latifúndios nas águas”, afirma Maria das Neves, pescadora em Pernambuco e integrante do movimento.
A aquicultura se instala em grandes áreas e suprime os espaços de pesca artesanal. Seguranças são contratados para garantir que pescadores não se aproximem a uma distância de pelo menos 50 metros do empreendimento. “Além disso, estes empreendimentos prejudicam a piracema e contaminam a água com remédios dados aos peixes. Sem contar a ração que altera a cadeia alimentária dos peixes nativos”, afirma Maria José Pacheco, secretária executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
O secretário executivo do CPP no nordeste, Severino Santos, afirma que, para que não haja impacto na pesca artesanal é necessário um ordenamento pesqueiro sério. Para isso, propõe um levantamento da produção pesqueira, identificação das espécies e o zoneamento das áreas de pesca, levando-se em consideração o conhecimento das comunidades pesqueiras.
Invisíveis?
Questionado, o MPA, por meio de seu departamento de imprensa, afirma que as políticas públicas de fomento da aquicultura não comprometem as políticas públicas de fomento da pesca artesanal. “Uma não inviabiliza a outra porque são linhas de atuação diferentes e que se complementam com o objetivo de aumentar a produção e a qualidade do pescado no país, tanto por meio da aquicultura como por meio da pesca”.
O secretário executivo do CPP, por outro lado, sustenta que não há dúvida de que ações do MPA invisibilizam a atividade pesqueira artesanal. “O discurso e as ações do MPA estão voltados para o hidronegócio, no início a carcinicultura, e agora a cessão de águas para desenvolver projetos de maricultura e piscicultura para cultivar de forma intensiva, principalmente, a tilápia e o bejupirá”, afirma. “Na região do São Francisco, por exemplo, o governo tem incentivado pescadores artesanais a fazerem investimentos na aquicultura”, critica.
O que existe hoje voltado para o pescador artesanal é o seguro desemprego no período da piracema (novembro a fevereiro), já que são impedidos de pescar nesta época do ano, e empréstimos específicos que chegam ao valor de R$ 2.500.
Contradições nas estatísticas
Igreja submersa para a construção do Lago de Itaparica aparece devido à seca no sertão brasileiro. Foto: Renata Bessi.
Existem hoje 970 mil pescadores registrados no MPA, sendo que 957 mil são artesanais. De acordo com o ministério, 45% do pescado produzido no país, 1,240 milhão de toneladas, é resultado da pesca artesanal. “Há certa incongruência nestes dados. Como é possível que 96% dos pescadores pesquem menos da metade dos peixes”, afirma Tarciso Quinamo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). O movimento dos pescadores estima que 70% do pescado venha da pesca artesanal.
Qualidade duvidosa
Pescadores artesanais têm acesso limitado à água em áreas onde há presença crescente de empresas da Aquicultura. Foto: Renata Bessi.
O espelho de água do Lago de Itaparica, nordeste do Brasil, represa as águas do Rio São Francisco e é o terceiro maior espelho do país com uma área de 834 Km2. O lago abarca cinco municípios no estado de Pernambuco – Floresta, Belém São Francisco, Petrolândia, Itacuruba -, e no estado da Bahia os municípios de Glória, Chorrochó e Rodelas. A represa foi feita em função da hidroelétrica de Itaparica, em atividade desde 1988. Para sua construção foram inundadas as cidades de Petrolândia, Itacuruba, Rodelas e o povoado de Barra do Tarrachil.
As Associações dos Pescadores e Pescadoras de Peixe do Lago do Papagaio e a Associação Agropesca São Francisco mantêm seus criadores em uma das ilhas do lago de Itaparica, na região que os pescadores chamam de Serra do Papagaio. Não há como desembarcar na ilha sem submergir pelo menos metade do corpo na água, aparentemente limpa e cristalina. A equipe de reportagem desembarcou a alguns metros dos tanques onde os peixes são criados. Ao chegar à terra era possível ver larvas grudadas nos pés e nas pernas da equipe.
O membro da Colônia de Pescadores de Petrolândia, Pedro de Souza, relata denúncias dos pescadores em relação aos peixes criados em cativeiro. “Sabemos que desenvolvem inúmeras doenças que atacam os animais como fungos e larvas. Vemos até mesmo aberrações como peixes vivos, mas com metade do corpo necrosado”, afirma.
A piscicultora Maria José, que trabalha na ilha, relata que suas atividades são basicamente alimentar os peixes e tirar dos tanques os animais mortos. “Às vezes estufam os olhos. Outros perdem a escama”, disse. Para combater as doenças, os criadores acabam fazendo uso abusivo de antibióticos, pesticidas, antifólio, altamente tóxicos e poluidores.
Nelson de Souza, outro trabalhador da cooperativa, admite que os peixes mortos se tornam um problema. “Não podemos jogar na água, pois polui. Então a saída é enterrar estes peixes”, afirma.
No mesmo dia, a reportagem, navegando pelo lago de Itaparica, encontrou em uma das ilhas contêineres cheios de um resíduo composto por restos de peixe. “Coloca-se algum produto para o peixe se desmanchar. Nem urubu nem mosca chegam perto destes restos”, afirma Pedro.
Questionado sobre o controle sanitário da atividade, o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo do município de Petrolândia, Marcos Rogério Viana, disse que engenheiros agrônomos da prefeitura fazem a cada 60 dias monitoramento e até o momento não houve problema nenhum em relação à qualidade da água e do peixe.
Revolução Azul
Em uma das Ilhas do Lago, encontra-se recipientes com vestígios de peixes dissolvidos com algum produto químico. Foto: Renata Bessi
O redimensionamento da produtividade dos oceanos, rios e outros ambientes aquáticos, com tecnologia que permite um maior extrativismo aquático, foi chamado de Revolução Azul que, segundo a FAO, aliviaria a pobreza em resposta à segurança alimentar e geração de emprego assim como um maior crescimento econômico, projetando o que a organização denominada como Crescimento Azul, retomado no documento, “O Futuro que Queremos” Rio + 20.
Segundo os últimos dados registrados pela FAO, no ano de 2012, a produção mundial pesqueira alcançou um nível de 158 milhões de toneladas, sendo que 15 países foram responsáveis por 92,7% de toda a produção de peixes comestíveis cultivados em 2012. Entre eles, Chile e Egito tornaram-se produtores de milhões de toneladas em 2012. O Brasil é considerado um país potencial no ranking mundial na área de aquicultura.
No entanto, de acordo com dados da FAO, as importações de pescado aumentaram 108% desde 2012, tendo como principais destino países que não sofrem com a fome, ou seja, países desenvolvidos como os Estados Unidos , Alemanha, Japão e França. A expectativa é que em 2030, o Brasil passe a contribuir com a projeção da FAO para produzir 20 milhões de toneladas de peixe por ano.
Margens em disputa
A disputa pelas terras às margens das águas do Lago de Itaparica é outro fator que ameaça a pesca artesanal nesta região do Brasil. Território tradicionalmente utilizado pela pesca artesanal, os pescadores têm convivido com novos apetrechos na paisagem de beleza cênica rara do semiárido nordestino. Nas praias de água doce, nas ilhotas e nas terras que margeiam o lago tornou-se comum deparar-se com cancelas, cercas, estacas, arames e placas que proíbem a passagem dentro e fora das águas.
Os pescadores têm convivido com práticas violentas. “Tem uma garoba aí que a gente se arranchou dias atrás e quando saímos tacaram fogo na garoba pra gente não voltar. É de não acreditar, mas derrubaram o mato para a gente não voltar”, conta Gilda Henrique, 29 anos, pescadora do lago de Itaparica, em Petrolândia.
A pesca artesanal tem sua dinâmica própria. O pescador se move de acordo com os tempos de reprodução do peixe, de maneira que os espaços de sua atividade variam. “O peixe desaparece em um canto e temos que ir pra outro lado atrás dele”, explica Gilda. Os pescadores costumam alojar-se ao longo de dias ou até mesmo semanas nos chamados “ranchos”, abrigos de uso comum dos pescadores que ficam às margens do rio e nas ilhotas que compõem a represa de Itaparica. É o espaço de apoio e de convivência dos pescadores, de troca de experiências e de saberes nos dias de trabalho nas águas.
Deixam suas casas geralmente na segunda-feira e permanecem por cinco ou seis dias nas águas do rio São Francisco, até durar o gelo que conserva o peixe. Nas ilhas soltam a rede e utilizam o rancho para limpar, salgar e gelar o peixe, dormir, cozinhar e fazer suas refeições. “E assim vamos de rancho em rancho atrás do nosso peixe”, explica Gilda.
O movimento que demanda a atividade tradicional pesqueira contrasta com a dinâmica dos ‘donos’ das terras que vem surgindo sem ordenamento ao longo do lago, seja para criação de peixe, plantio, criação de animais, turismo aquático ou casas de veraneio. Navegando pela represa percebe-se os contrastes entre ranchos dos pescadores, casas de luxo e praia com bares e restaurantes. Encontra-se até mesmo cercas dentro da água. “Aqui você chega com sua embarcação para pescar, encosta nas margens do lago e já chega logo o ‘dono’ e diz que não quer ninguém ali. Uns resistem e ficam, mesmo com medo de chegar alguém na noite para matar. Já têm outros que se vão”, conta José Ilton, 40 anos, pescador da represa. “A gente vai ficando cercado”.
Quem são os responsáveis pelas terras?
As terras nas bordas do lago estão sob administração da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), ligada ao Ministério de Minas e Energia. O secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo do município de Petrolândia, Marcos Rogério Viana, admite haver conflito nestes espaços. “Muitas pessoas estão invadindo e a Chesf não toma uma providência para despejar estas pessoas. É um conflito que existe e precisam encontrar alternativa para resolver”, afirma.
A Chesf afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não é responsável pelas margens do reservatório mas, contraditoriamente, admite ter controle sobre Áreas de Preservação Permanente (APP). De acordo com a Lei 12.651, artigo 3, da Constituição Federal do Brasil, as APPs são “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. E são, de acordo com seu artigo 4, “as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente”.
O Conselho Pastoral da Pesca (CPP) sustenta que as terras de domínio da União, tanto APPs quanto as delimitadas para segurança, estão sendo ocupadas por posseiros. O secretário executivo do CPP no nordeste, Severino Antônio dos Santos, cita o exemplo das terras entre os município de Petrolândia e Jatobá que margeiam o lago. “As terras que ficam entre a BR 316 e o lago, que são da União, seja APPs ou área de segurança, estão sendo invadidas por posseiros, casas de veraneio, empresas. É só caminhar pela estrada e é possível ver”.
De acordo com Alzení Tomaz, do Núcleo de Pesquisa e Estudo em Povos e Comunidades Tradicionais e Ações Socioambientais (Nectas), da Universidade do Estado da Bahia, não há dúvida de que as bordas do lago estão sob responsabilidade da Chesf. “O que acontece é que a empresa distribui estas terras de acordo com critérios não transparentes. Sabemos que isso acontece, mas não temos o mapa destas terras. Já fizemos várias solicitações, inclusive via Ministério Público, para saber o que de fato foi transferido ou não, e como isso é feito, mas a Chesf se exime da sua responsabilidade de informar”, afirma a pesquisadora. “Esta situação acaba gerando invasões ilegais e depredação da vegetação e das águas. O que se deve levar em conta é que esta situação precisa ser resolvida para que os promotores das invasões sejam responsabilizados e que as áreas sejam realmente preservadas”.
Alzení lembra que os pescadores artesanais não foram considerados pelo governo, foram atingidos pela construção da represa e acabaram sem acesso a muitos dos seus territórios tradicionais. “E infelizmente situações como esta se repetem em todo o Brasil”, avalia.
A Chesf, questionada se possui conhecimento das invasões nas margens, limitou-se a responder que não possui responsabilidade pelas áreas.
Mobilização pelo Território Pesqueiro
5 horas da manhã em uma das Ilhas do lago de Itaparica, chamada pelos pescadores de Porto Serra do Mocó. Ainda escuro, Rosalvo Ferreira da Silva chega trazendo na canoa a rede que havia deixado nas águas no final do dia anterior. Para lançar a rede ao rio, o ideal é que os pescadores estejam pelo menos em dois. Um para segurar o barco e outro para arremessar a rede. Mas Rosalvo joga sozinho. “O vento vai levando o barco enquanto jogo. Se me leva para o lado errado, fico bravo”. Na rede predominam a tilápia, curvina e a piaba. Aproxima a canoa da terra e começa a lidar com os peixes”, justifica.
Rosalvo, 64 anos, começou a pescar com 12 anos, na Barreira Velha, que está agora debaixo das águas represadas. Naquela época pescava no São Fracisco velho, o de águas correntes. Ali tinha também uma roça. Com a represa foi deslocado para uma agrovila em Petrolândia. “Fiquei um tempo parado, mas tava ficando doente. Aí caí fora, sou do rio … desabei para as águas”, lembra.
Enquanto abre o dorso de uma piaba, o pescador se dá conta de que naquele dia a pesca não foi tão boa. “A lua está clara [lua cheia]. Para anzol tanto faz lua clara ou escura. Peixe de anzol, como o tucunaré, não come à noite mesmo, quando escurece ele acama. Mas para peixe de rede esta lua clara não serve. A rede brilha e eles fogem”, explica.
Rosalvo gosta da solidão das águas. Está protegido. “Não sei vocês, mas todo dia às 6 horas vejo a Maria das Águas. Eu estou sozinho e me concentro. Conheço gente que também vê. As águas dos rios têm muito segredo, assim como os astros no céu e o mato”.
O uso que os pescadores fazem do rio São Francisco vai além da relação objetiva de garantir o sustento de suas famílias. Há uma relação ancestral e mística. “A afinidade entre essas comunidades e o rio se apresenta como algo tão íntimo que soa como uma relação de parentesco ou familiar. O rio com seus mitos, suas águas e seus ciclos está impregnado no modo de ser das pessoas”, afirma Neusa Francisca Nascimento, da CPP do estado de Minas Gerais.
Existe um conhecimento popular sobre as águas, o peixe, o tempo, os astros, construído ao longo de gerações. Esse conhecimento composto coletivamente nas comunidades não é passado a partir do ensino escolar, mas transmitido de pai para filho. É em defesa desse modo de vida construído em torno da pesca que estão sendo desenvolvidos esforços pela regulamentação do território das comunidades tradicionais pesqueiras.
O movimento dos pescadores está em campanha pela aprovação do projeto de lei de iniciativa popular para regularizar o Território das Comunidades Tradicionais Pesqueiras. “Hoje não existem procedimentos para regularizar os territórios das comunidades tradicionais pesqueiras”, explica Maria José. O objetivo, de acordo com ela, é regulamentar o espaço utilizado pelos pescadores, assim como acontece com as demarcações de terras indígenas e quilombolas.
Para ser aprovado, o projeto necessita do apoio de 1% do eleitorado brasileiro, ou seja, 1.406.466 assinaturas. Para saber mais sobre a Campanha acesse: http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/
Ameaçada
Funcionários da AAT International Ltd., empresa de aquicultura brasileira, foram enviados para destruir este “rancho”, um lugar onde os pescadores tradicionalmente guardam seus materiais. Foto: Renata Bessi
A pesca é uma atividade milenar. Há sambaquis (depósito de conchas, cascas de ostras e outros restos de cozinha) na costa litorânea brasileira que remontam a mais de 8 mil anos, lembra Tarcisio Quinamo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). “A atividade da pesca tradicional se mantém, claro com renovações, até hoje. E a ameaça nunca esteve tão viva”, afirma.
Para Maria José, o que há no país é um modelo de desenvolvimento que não inclui o povo brasileiro. “Os territórios onde os pescadores estão em todo o Brasil são bonitos, valorizados, cheio de recursos hídricos, bosques, manguezais. Por isso é terra em disputa. Mas estas áreas só existem porque estas comunidades as preservam”, afirma Maria Pacheco.
”Que diabo de desenvolvimento é esse, que destrói casa, que tira pessoas que não têm dinheiro dos seus lugares? Tira a vontade da gente, o direito, o desejo. Está faltando o pessoal estudar o que é fazer desenvolvimento sem esmagar o povo”, reclama Maria das Neves.
Acesse as versões em espanhol e inglês da reportagem: